CARTA DE
BELO HORIZONTE
II
Seminário da Frente Mineira sobre Drogas e Direitos Humanos.
Desconstruir
a proibição para fundar uma política singular e cidadã: nosso percurso de
trabalho.
Ao se
inserir no debate e inventar-se como ator e interlocutor político, o coletivo
que compõe a Frente Mineira sobre Drogas e Direitos Humanos assumiu, entre
outras responsabilidades, a tarefa de provocar o pensamento, de questionar o
paradigma proibicionista por reconhecer no mesmo a sede de danos colaterais, de
conseqüências letais e custos sociais. Muito mais prejudicial que o consumo, a
guerra às drogas é responsável por um alarmante número de mortes de jovens
pobres e negros, sendo ainda, a causa do vertiginoso e vergonhoso
encarceramento, também de jovens pobres e negros.
Desde
então, continuamos a testemunhar e a denunciar os efeitos perversos desta
política, evidenciando que sua opção bélica se opõe à civilização e produz mais
sofrimento. Daí, a inadiável necessidade de superá-la, também como condição
para o avanço da democracia.
O
trabalho militante deste coletivo, contudo, não se restringiu à importante e
necessária constituição de um espaço de debate, capaz de abrir fissuras no
discurso totalitário da proibição. Nosso compromisso cidadão nos
levou à atuação em outras frentes que continuam a produzir desdobramentos e
ressonâncias, demonstrando que, se por um lado o empuxo à exclusão se mantém,
por outro, a luta em defesa da vida não se arrefeceu!
Lembraremos
aqui algumas intervenções empreendidas pela Frente em parceria com outros
movimentos sociais, na sustentação do compromisso de incluir a todos, de
construir modos de fazer caber as diferenças no espaço da cidadania.
Tomamos
posição e denunciamos por meses e a diferentes órgãos públicos e à imprensa, as
arbitrárias e violentas ações de recolhimento de pertences dos que vivem nas
ruas, solução higienista, levada a cabo pelo poder público municipal.
E nos
colocamos como parceiros, assumindo com outras entidades a denúncia sobre o
fechamento do Miguilim, espaço criado em 1993 para acolhimento dos meninos e
meninas em situação de rua, que encontrou na burocracia o limite para a
continuidade de seu trabalho. Desde o
início deste ano, o Miguilim fechou suas portas e esse público foi exposto,
pelo poder público, a situações de maiores vulnerabilidades. O último
desdobramento desta ação alcançou a Câmara de Vereadores, implicando, portanto,
o legislativo municipal que por não poder olvidar esta realidade, torna-se,
também, responsável pela necessária superação dessa indigna e violenta condição
ou por sua indesejável manutenção.
E, onde
a droga surgia como álibi para o seqüestro de direitos, na prática das
internações compulsórias e involuntárias, adotadas como solução mágica para o
mal-estar e o risco, a Frente soube tomar posição e convocar outros a assumirem suas decisões. A audiência
pública na Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa ressoou além
dos limites do parlamento, e a Procuradoria Estadual e o Ministério Público
tornaram-se destinatários destas denúncias e aos mesmos compete uma tomada de
posição. Apesar das conversas iniciadas e com bons augúrios, ainda não
conseguimos concretizar ações com essas entidades.
E da
aliança universidade
e gestão municipal eis que surge outro obstáculo. Num gesto autoritário o poder
público de Belo Horizonte impõe uma formação aos profissionais, absolutamente
contrária aos princípios e à prática da rede. Quando trabalhadores buscam
recursos para construir uma clínica solidária ao sofrimento, gestores e
acadêmicos, alheios ao cuidado, inexperientes, com discursos vaidosos e
onipotentes, reapresentam a exclusão, o preconceito e o simplismo como
inovações tecnológicas. Lamentável e repudiável decisão!
Neste seminário registramos nosso repúdio a
outra ação de violação de direitos: a Recomendação 26/2014 da 23ª Promotoria
Cível da Infância e Juventude de Belo Horizonte que, ao introduzir notificações
compulsórias dos casos de gestantes usuárias de drogas enseja a adoção de
práticas de violação de direitos humanos e endossa o seqüestro do direito à
maternagem.
Nacionalmente,
a Frente também tem atuado, pressionando a Câmara Federal e Senado,
posicionando-se contrário ao Projeto de Lei do deputado Osmar Terra, através de
manifestos, articulações com as entidades antiproibicionistas e
antimanicomiais, reuniões com os gestores federais, culminando, até o momento,
no adiamento da sua votação nas Comissões do Senado.
Outra
ação de âmbito nacional foi o posicionamento firme e claro da Frente, enviado
ao Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas – CONAD, contrário à proposta de
regulamentação das Comunidades Terapêuticas, em especial, no que diz respeito
ao financiamento público das mesmas.
Continuamos
a testemunhar, a denunciar e a intervir sobre processos que reeditam a obsoleta fórmula da exclusão para
questões sociais, no entanto, nem tudo, foi só resistência. Também assistimos e
comemoramos conquistas.
Do
debate sobre as aplicações terapêuticas da maconha, diálogo que desfaz brumas e
monstros, ainda que não esgote nem conclua a questão, sinaliza um avanço. É
preciso, contudo, manter a disposição para a subversão de todo o paradigma,
rompendo, enfim, com a demonização de todas as drogas, para assim inscrever a
relação droga-sujeito e droga-sociedade nos limites dados pelo laço social e
pela cultura. É isto o que aponta o Uruguai e sua corajosa decisão; também é o
que nos apontam os
estados do Colorado e Washington que legalizaram o uso da maconha e os outros
23 estados estadunidenses que regulamentaram o uso terapêutico da mesma.
Apostando
no avanço deste debate e na conquista de outra inscrição jurídica e
regulamentação para o uso da maconha, declaramos nosso apoio à Emenda Sub 8 que
propõe a legalização do uso da maconha no Brasil.
Registramos,
ainda e com orgulho, a articulação entre luta antimanicomial e
antiproibicionista que, na última edição da Marcha da Maconha em Belo
Horizonte, assumiram sua parceria e ocuparam as ruas da cidade para sustentar a
inadequação de duas ditaduras: a da razão e a da moral.
Avancemos!
Adiante, rumo à desconstrução do proibicionismo.
Para que
nossa futura Carta do próximo seminário não tenha que reeditar as mesmas
propostas, esperamos e apostamos que o novo governo estadual eleito saiba fazer a diferença
na política de drogas, subvertendo o modelo e a prática do governo que se
encerra e que tanto trabalhou e contribuiu para ampliar a intolerância, o
estigma e o preconceito contra os usuários de drogas; que tantos recursos
investiu e destinou às instituições e práticas segregativas e violadoras de
direitos; que na política de drogas, sempre se comprometeu com a privatização
dos serviços e recursos públicos.
O que
esperamos e desejamos do governo estadual que se iniciará é que o mesmo saiba sustentar
e fazer valer o direito à cidadania para todos, ousando romper com as políticas
de exclusão e segregação para instaurar em Minas Gerais e dar exemplo ao país,
de uma política que, verdadeiramente, se oriente e se comprometa com a
liberdade e com os direitos humanos para os que usam e abusam de drogas. Uma
política de paz e não de guerra! Uma política para os homens e suas dores
e prazeres. Uma política cidadã, singular e solidária.
Belo
Horizonte, 10 de outubro de 2014.
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